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Comissões e conselhos populares: o dilema entre a falsa sensação de participação do povo e a limitação criativa dos gestores públicos

Professor Paulo Santana, uma das raras falas inovadoras na Conferência Estadual de Saúde, mas pouco compreendido pelos gestores públicos presentes. Crédito: @Leoblemos.

Depois de anos com comissões populares e conselhos esvaziados ou imobilizados graças ao governo Bolsonaro, o Brasil voltou a respirar e viver a participação popular democrática na tomada das mais variadas ações governamentais, como vem ocorrendo através de ações tipo o PPA (Plano Plurianual Participativo do Governo Federal) ou as Conferências Estaduais de Saúde.

Chama a atenção, porém, o descompasso entre intenção das ações, que é a participação popular, e sua efetiva realização - o povo ser respeitado, ouvido e incluído nas decisões ou sugestões.

Foi sintomático o vergonhoso esvaziamento da mesa de abertura do Plano Plurianual Participativo do Governo Federal (PPA) em Recife-PE, em 12 de maio de 2023: o povo falou, mas quem ficou para ouvir?

Com um Centro de Convenções lotado de movimentos sociais e população em geral, as lideranças simplesmente foram embora após as falas oficiais, dando as costas justamente à fala mais importante - a participação popular.

Nada apaga o constrangimento do cerimonialista chamando a presidenta da Amupe e prefeita pelo PT, Márcia Conrado, enquanto esta já tinha ido embora - uma liderança do PT não prestigiou o tipo de evento que é a marca do PT. Sintomático como estamos em descompasso.

“Ah rapaz ela foi embora?” diz o cerimonialista. Trecho do vídeo: https://youtu.be/zJYSv0xQOns?t=11361

Pois bem: um outro episódio para especificar a gravidade do problema.

Na 10ª Conferência Estadual de Saúde - III Macrorregião, realizada de 22 a 23 de maio em Arcoverde-PE, a ilusão de participação se repetiu, mas dessa vez ainda mais emblemática: nos debates dos eixos temáticos, onde grupos de trabalho poderiam trazer as suas contribuições para melhorar a saúde pública, as propostas apresentadas pelos usuários simplesmente eram minimizadas ou ridicularizadas pelos gestores.

Mesmo quando as interlocutoras da conferência tentavam desenvolver a ideia junto com o usuário que a sugeria, os gestores minimizam.

Nada contra a opinião dos gestores, não há dúvidas que eles, melhor do que ninguém, devem saber muito bem sobre os bastidores da saúde pública no país. Mas, contrariando inclusive a palestra do professor e médico Paulo Santana, que abriu o evento e pregou a desburocratização do SUS e aquele momento “como sendo a hora de sonhar e buscar caminhos para efetivarmos o SUS que queremos”, aos gestores parece ter ficado a sensação de que ou não entenderam a palestra do professor e seu apelo por inovação ou não entenderam a natureza do encontro - o SUS que queremos, amanhã vai ser outro dia.

Qual a lógica de podar qualquer ideia que desafiasse a gestão a sair do lugar comum? Ou os gestores estavam ali para sabotar a inovação no SUS?

Porque ainda que qualquer proposta estivesse desalinhada à conferência, sendo de responsabilidade de outro ente federativo que não o Estado de Pernambuco, não custava aos gestores ajudar a alinhá-la ao modelo ali pertinente.

Ao minimizar as propostas, os gestores criavam um efeito manada nos outros participantes, que acabavam recusando a ideia. Cômodo manter o SUS como está, não? Será que é um SUS burocrático, centralizado e limitado que queremos?

Exemplo de proposta minimizada: programa municipal de atenção à saúde do agricultor com adaptação de carros que possam adentrar às zonas rurais e fazer consultas de clínica geral e dermatologia, evitando patologias básicas e risco de câncer de pele.

Qual era a recusa dos gestores? “Responsabilidade do município”; Qual seria a solução para virar uma proposta? Adaptar para “política estadual de fomento ao programa municipal de atenção à saúde do agricultor”. Esta era a postura ideal deles caso quisessem melhorar um serviço que não há nos municípios. Mas eles preferiram recusar.

Outro exemplo: sistema de marcação online que fosse desenvolvido pelo Estado e disponibilizado aos municípios para que o cidadão não precisasse ir para filas nas madrugadas para marcar consultas. "O usuário não sabe usar tecnologia" ou "já há um sistema assim" foram as sentenças.

Se já existe um sistema temos, então, um problema mais grave: a comunicação entre o usuário e o SUS tem um problema. A conferência não é lugar para resolver os problemas? Por quê os gestores não sugeriram isso? O que faziam ali naquele ambiente que deveria ser de gestação de novas ideias e inovação?

O pior de tudo foi a surpresa dos usuários quando descobriram que já há um sistema assim - "se há, não é divulgado", repetiram alguns em meio ao debate.

Óbvio: a gestão contemporânea da Saúde Pública no Brasil, com raras exceções, é limitada e burocrática porque esses gestores não usam o SUS. Isso é um fato - se eles usassem não deixariam ocorrer os abusos que existem e todos os dias a mídia noticia ou denuncia.

Quando a política pública não beneficia ao gestor, ele pouco se interessa em acolher a ela com carinho, e ficou claro, naquele encontro, que o que interessa ao gestor municipal é dinheiro - "vai ter mais dinheiro para aumentar as equipes", diziam alguns representantes dos municípios. Eles querem sempre mais dinheiro, mas soluções para levar a saúde a mais gente e humanização do atendimento estão em segundo plano. E quando falamos de mais dinheiro em municípios estamos falando de mais chance de cargos de cabide, para acomodar aliados políticos.

Enquando o gestor do SUS não utilizar o SUS, nada vai melhorar.

Após a análise desse fenômeno nos dois eventos, fica a sensação de: após anos de ataque à participação popular, conselhos e escutas, após o cenário de terra arrasada deixada pelo antigo governo federal, os cidadãos saberão novamente sonhar com a política que queremos? E ocupar a política?

Fica a reflexão e fica o apelo aos gestores públicos de sair do conforto de seus escritórios fechados e viver o serviço público na prática, sobretudo a saúde. Em cidades como Afogados da Ingazeira, por exemplo, ainda existe a inimaginável fila em frente às UBS nas madrugadas para marcação de consultas.

Em Pernambuco, de maneira geral, há a possibilidade de ampliar as escolas públicas de saúde através da UPE, para que assim se aumente o número de médicos, mas falta ação para efetivar tal feito - enquanto isso a iniciativa privada segue abrindo escolas de medicina caríssimas e pouco acessíveis, que em nada contribuem para o fortalecimento do SUS.

Se queremos mesmo um Brasil menos burocrático, sistemas de saúde eficazes e políticas públicas efetivas, precisamos começar essa renovação pelos gestores municipais arcaicos e atrasados, que se acham intocáveis quando, na verdade, em sua maioria, são apenas pessoas deslumbradas por um cargo político temporário. Eles destroem o serviço público, e a iniciativa privada os aplaude para seguir oferecendo um serviço que deveria ser público mas o gestor municipal não consegue executar. É assim com saúde, educação, habitação...

Por Leonardo Lemos @LeoBLemos, jornalista (DRT/PE 4562) e produtor cultural Afogados da Ingazeira-PE.

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