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“Estranhou o quê? Preto pode ter o mesmo que você!”

Por: Daniel Teixeira
Com este verso, a madrinha do samba, Beth Carvalho, iniciou uma das canções do seu novo show, "Estranhou o quê?", apresentando-se em um prestigioso teatro na cidade de São Paulo, no início do mês de maio.

O público reagiu bem à letra de Moacyr Luz, cujo refrão propõe uma relevante e atual reflexão sobre racismo nas relações de consumo.

A população negra é consumidora de longa data no país. Porém, com o aumento, ainda que pouco, do poder de compra registrado na última década (segundo levantamento do Ibope, a chamada "nova classe média" é predominantemente negra), parte desta população vem participando de espaços sociais até então praticamente inacessíveis. Estes espaços incluem shoppings, restaurantes, hotéis, academias etc.

Além disso, há alguns anos, os consumidores negros vêm se tornando cada vez mais conscientes em relação a seus direitos e, consequentemente, mais atentos a possíveis violações e a como denunciá-las. Sendo assim, os casos de denúncia de discriminação em estabelecimentos comerciais vêm crescendo, evidenciando fórmulas antigas de racismo institucional, operacionalizadas por atendentes, gerentes e, principalmente, seguranças.

Um exemplo foi o do músico negro Pedro Bandera que, ao dirigir-se a uma livraria para se apresentar, foi vítima de uma abordagem nitidamente preconceituosa por parte de seguranças do shopping Cidade Jardim que o barraram para saber o que ele estaria fazendo ali, diferentemente dos músicos brancos, seus colegas, que, em outro momento, entraram livremente. Embora os seguranças não tenham sido identificados, para fins de responsabilização criminal, o shopping foi condenado em recente decisão da segunda instância da Justiça Cível de São Paulo e deverá pagar uma indenização ao músico.

Apesar do baixo valor indenizatório arbitrado pelo Poder Judiciário, foi importante manter o referido shopping condenado, em segunda instância, tendo em vista a quantidade de casos em que os estabelecimentos são inocentados de arcar com a responsabilidade pelos atos de seus funcionários, o que deveria ocorrer sempre. A contribuição do caso é para que, na prática, um novo entendimento jurídico sobre o tema se consolide, portanto. O shopping Cidade Jardim ainda deve recorrer, mas sua marca está ligada a este caso de discriminação, tendo em vista a repercussão de ambas as condenações, em primeira e em segunda instância.

Esta realidade enfrentada pelos negros brasileiros em espaços sociais que os discriminam, pode ser agravada durante grandes eventos como a Copa do Mundo, tendo em vista o grande afluxo de turistas, incluindo visitantes negros de diferentes países.

Cabe lembrar pesquisa realizada em 2010, pela Fundação Procon de São Paulo, a pedido da Coordenação de Políticas para a População Negra e Indígena da Secretaria de Justiça do Estado, sobre a percepção do preconceito e a reação à discriminação racial em ambientes de consumo. Segundo a pesquisa, a maioria dos entrevistados (56,43%) já presenciou atitude de discriminação racial.

Neste sentido, o crescente número de casos na Justiça envolvendo racismo no consumo não surpreende, representando simples sintoma do racismo institucional, fenômeno que propicia outras graves violações de diretos humanos, a exemplo do atendimento precário a mulheres negras em serviços de saúde e dos homicídios contra jovens negros, com índices alarmantes em todas as regiões do Brasil.

Quem dera, como legado da Copa do Mundo, das manifestações ou, ainda, dos recentes rolezinhos em shoppings, pudesse ficar um duro combate ao racismo e que não precisássemos ser sempre tantos a gritar contra a discriminação nos espaços sociais que frequentamos, a exemplo do que fez uma jovem negra em alto e bom som ao final da apresentação da música supracitada: "negro também pode vir ao teatro assistir ao show da Beth Carvalho!!".

Daniel Teixeira, 31. Advogado do CEERT - Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades; especializado em Direitos Difusos e Coletivos pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e em Direito Constitucional e Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da Universidade de Columbia

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